ENQUANTO O DIA NÃO AMANHECE
O breu noturno característico se quebra pela presença da lua, que hora cheia, hora nova, cresce, e míngua, numa bipolaridade sistemática cruel, capaz de consternar o mais são dos espectadores. Se há, então que haja. O fluxo de alternância, subjugado pelos capachos de Urânia, atormenta e constrange o refugiado do amanhã.
Mas a noite, dessa vez, há de acabar. As lamparinas e candelabros não mais iluminam a negra estrada do acaso, e o relógio cósmico prevê e projeta a temida alvorada. Não há dúvidas: o dia há de nascer. Mas, enquanto isso, aproveitemos a noite.
Em incontáveis manhãs, clamei às plantas por uma vaga em seu jardim. Por tanto declamei minha dor, e não houve rosa que se compadecesse. Talvez, de fato, as rosas não falem, mas, de certo, escutam. Os gritos mudos hão de penetrar as folhas e pétalas, que se silenciam respaldadas pela fotossíntese que, graças às lágrimas escorridas de meus olhos, permitem o respirar do teu corpo, e a vitalidade de tua persona.
Em tantas outras manhãs já tomei café preto, já fui ao trabalho, e já me dirigi à escola, mas hoje, nada disso! Enquanto o dia não amanhece, me conte mais sobre você, escute comigo a sua música preferida, e depois escutemos a minha. Conversemos sobre aquele filme, deixe-me te contar aquela história, e então peçamos aquele vinho barato, e depois acenda um cigarro e ria, enquanto eu tusso pela fumaça… Fique comigo, fazendo sabe-se-lá-o-que, mas só até as 5, que é antes de o sol nascer.
Enquanto o dia não amanhece, me diga que há esperança. Me diga que, ainda na madrugada, o academicismo capitalista se derramará no inconsistente, a revolução virá, e o que parece impossível, acontecerá no oceânico amanhã. Me diga, sem mentir, que não haverá medo onde bater o sol. Me conte sobre suas outras noites, e me faça relembrar o que jamais fora vivido, e torne real as mais pitorescas e bucólicas fantasias.
Enquanto o dia não nasce, me prometa o futuro que não vai chegar, os sonhos que não vão se realizar, as profecias que não irão se concretizar, faça promessas que não possa cumprir, e por fim prometa ficar, mas só até as 5, porque, a partir daí, o incólume crepúsculo findará nossa aventura noturna, e enfim seremos, a partir disso, o nada.
Quando o sol nascer, não haverá o álcool para descontar a raiva, muito menos sociedade para julgar as ações e escolhas. Não haverão ligações perdidas, mensagens não respondidas, nem dívidas de banco. Não haverá tempo perdido, bem como tempo algum. Não há, também, onde o sol toca, a dor e o vazio do cotidiano volátil e previsível, nem a perfurocortância flamejante da saudade, que queima sem cauterizar, e opera, com faca cega, um corte preciso.
Se tivermos sorte, talvez o sol não nasça hoje. Quem sabe, com uma pitada extra de esforço, desfrutemos mais uma vez das noites dormidas sob o acalent cobertor e dura cama, na simbiose humana de afeto e confiança, que conquistadas, nunca compradas, garantem a raríssima alegria e felicidade, as quais podem tudo, inclusive impedir o crepúsculo metafórico, que vem atrelado de maneira siamesa à tragédia palpável. Oh, lua, que de tão brilhante e magnética, segue, desde que a conheci, alterando meus percursos, e redefinindo meus destinos, além, é claro, sem dúvidas, estendendo e relativizando o tempo da viagem.